sábado, 20 de novembro de 2010

"Ver vendo"


 
"... De tanto ver, a gente banaliza o olhar... Vê não-vendo...
 
Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver...
 
Parece fácil, mas não é...
 
O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade...
 
O campo visual da nossa rotina é como um vazio...
 
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta...
 
Se alguém lhe perguntar o que você vê no seu caminho, você não sabe...
 
De tanto ver, você não vê...
 
Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio de seu escritório...
 
Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro...
 
Dava-lhe um bom dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência...
 
Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer...
 
Como era ele?
 
Sua cara?
 
Sua voz?
 
Como se vestia?
 
Não fazia a mínima idéia...
 
Em 32 anos, nunca o viu...
 
Para ser notado, o porteiro teve que morrer...
 
Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser que também ninguém desse por sua ausência...
 
O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem...
 
Mas há sempre o que ver...
 
Gente, coisas, bichos...
 
E vemos?
 
Não, não vemos...
 
Uma criança vê o que um adulto não vê...
 
Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo...
 
O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê...
 
Há pai que nunca viu o próprio filho...
 
Marido que nunca viu a própria mulher (e desconhece os seus segredos e desejos), isso existe às pampas...
 
Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos...
 
É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença..."
 
 
OTTO LARA REZENDE

Um comentário:

  1. Verdade.. Aquilo que se torna rotineiro acaba muitas vezes passando desapercebido...

    ResponderExcluir